segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Entalhes









entalhes

não existem retornos
por alguns caminhos
se morrem os sonhos
soçobram desatinos
e decisões pequenas
também viram destinos

do alto do seu ninho
a sorte se espalha
sem critério nem escolha
em águas fundas ou rasas
terras áridas ou encolhos
em todo canto encalha

o tempo abre feridas
mas cicatriza talhos
compromete o todo
quem não cura o detalhe
a ponte é um atalho
a arte é um entalhe.

akira yamasaki.



Breve análise de um poema de Akira.

Por Gilberto Braz

Analisar um poema de Akira sem o devido tempo e espaço para tomar o conjunto de sua obra como referência é um desafio e um risco significativo. Por isso, de antemão, vale ressaltar aqui alguns, mas não todos, traços distintivos da obra do japonês. Só assim, poderemos alcançar a compreensão do texto em análise. O primeiro traço distintivo da poesia deste grande poeta é a economia verbal, a diretitude. Akira não faz meneio. Chega e diz; pronto e ponto. O segundo traço marcante é a preferência por um vocabulário acessível, que não se acanha em recorrer ao conjunto de termos usados pelo cidadão comum das classes populares, sem demagogia de erudito que se mete a falar feito povo, sem apelos popularescos; uma fala natural, de quem conhece suas origens mas que, se preciso, é capaz de expandir seus recursos até uma linguagem sofisticada. A terceira característica, menos presente no texto atual, mas muito presente no conjunto da sua obra, é a capacidade imagética do poeta, verdadeiro fotógrafo da alma, que expõe em close os conflitos de uma violenta sociedade individualista, que gera exclusivismos e excluídos à exata proporção de um e de outro.

Feitas estas observações vamos ao poema: Entalhes

Entalhes, já enuncia em seu próprio título a diretitude da estética do poeta.
Com apenas uma palavra, que une economia e síntese ele anuncia Marcas.
Mas não são marcas quaisquer, são marcas construídas. Porque o entalhe é isto, a produção de um marca, definitiva, na madeira, por parte do carpinteiro, do marceneiro, do artista.

Em seguida seguem-se 2 versos, formando 1 dístico que diz exatamente o que quer dizer:

Não existem retornos
Por alguns caminhos

Mas olhando direito, não dizem apenas isto. Dizem também respeito ao título que os introduz. Uma vez a marca, o vinco, o sulco, feitos pode ser que não haja como anular, desmarcar, desfazer o vinco, fechar o sulco sem deixar a marca. Mas ele diz bem, não são todos os caminhos trilhados que são impossíveis de retornar, mas alguns são como entalhes, uma vez trilhados, por eles não se retorna.


Se morrem os sonhos
Soçobram desatinos

Novamente dois versos, a economia dos bons poetas, e é isto. Lembrando Pedro Osmar: eu não quis dizer isto, eu disse. Mas se morrem os sonhos, não deveriam soçobrar desatinos. Há aqui um paradoxo, uma pegadinha. Porque desatinado, na expressão corrente, é alguém que não se atina, não se liga, não se toca, não se apercebe das coisas. Entretanto se o que soçobra, soçobra porque morrem os sonhos, então o que soçobram são os ideais. E neste sentido, desatinos é igual a ideais, e desatinados é igual a idealistas, sonhadores, revolucionários. Há aqui mais um paradoxo. Se ele dissesse: se morrem os sonhos, proliferam desatinos, estaria justo. Diria o esperado, denotaria. Mas se os desatinos soçobram, ou seja perecem, justamente porque morrem os sonhos, então algo de inesperado foi dito, e este tom paradoxal é que garante a conotação, a inversão do sentido enriquecendo o poema de sentidos. Se morrem os sonhos, não poderiam soçobrar desatinos, mas é o que está dito. E estando dito, resta-nos buscar o que foi dito, seguindo a pista dada pela forma, ou seja, interessa-nos agora menos o que ele disse, e mais como ele o disse. E a pista chama-se paradoxo. Para entender o poema, temos que seguir-lhe a lógica. Sigamos pois, o paradoxo, à moda de Padre Antônio Vieira para desfazer este nó.

Seguindo-a temos que admitir, ou antes, compreender o que é, na linguagem do poema um desatino. Portanto, o que é um desatino que soçobra com a morte dos sonhos? O objeto do sonho? O objetivo dos ideais, o fruto das revoluções? Não, estes não são desatinos e nem o sonhador é um desatinado. Mas se o poeta assim o chama ou classifica, é para, por oposição revelar que classificar o revolucionário-sonhador-artista-entalhador de desatinado, é uma forma de ( a sociedade )esconder os seus próprios desatinos. Eu não presto, mas digo antes e vivo para provar que você não presta, e como você é diferente de mim, se você não presta, logo eu é que presto. É a lógica binária da nossa sociedade onde impera o dualismo maniqueísta. Portanto, o poeta ao invés de lutar contra, entra no jogo do maniqueísmo dualista e, ironia por ironia, saca da sua e dá um nó no senso geral usando exatamente a mesma arma para dizer o que não disse, ou desdizer o que sta dito. Portanto, quando ele diz desatinos, entenda ideais, entenda destinos, parafraseando os irmãos campos: será que alguém percebeu o anagrama?


e decisões pequenas
também viram destinos

Mais dois versos. Mais um dístico certeiro, capaz de conter em poucas palavras uma definição simples, mas nem por isso menos sofisticada. Porque se decisões pequenas viram destinos, cabe perguntar: Os destinos eram/são pequenos ou decisões aparentemente pequenas eram na verdade grandes? Esta dúvida paira aqui. E nada nestas duas linhas é capaz de esclarecê-la. Vale ressaltar que novamente o poeta recorre ao paradoxo. Somente o desenrolar do poema poderá nos esclarecer este ponto.

Mudamos de estrofe, portanto uma pausa maior nos é requerida, tanto na leitura, quanto no encadeamento de idéias que o poema sugere. Vamos mudar de cena, este é o convite que o poeta faz. Perceba que a divisão em estrofe é um recurso importante da forma. E que a forma está em perfeita sintonia com o conteúdo. A forma contribui para dar sentido ao poema na medida em que a pausa mais longa sinaliza o fechamento de um encadeamento de idéias e o início de um novo encadeamento, distinto não apenas nos conceitos significantes que vai apresentar, mas também diferente em termos do espaço-tempo em que ocorrem, por isso representados em nova estrofe, novo bloco significativo. Vamos mudar de espaço e também vamos mudar de tempo. Aqui um pequeno exemplar da capacidade imagética de Akira. Ele usa o recurso de uma imagem poética, mas de grande concretude para nos remeter a uma mudança no tempo e no espaço. Daí a necessidade de espacialmente localizar o próximo verso em uma nova estrofe, distante do verso anterior, que encerra a introdução do poema. Pois bem.


do alto do seu ninho
a sorte se espalha


Aqui vamos nos recordar das lições de nossos grandes professores de Português, eu particularmente me lembro do excêntrico prof. Luiz, do Tide dos anos 80. Quem se espalha? A sorte. E a sorte se espalha a partir de onde? Do alto do seu ninho. Veja que muda a cena. Muda o espaço. Antes não havia uma definição clara do espaço, senão pela menção de que estávamos situados em caminhos que não tinham retornos. Mas não eram caminhos caminhos, caminhos de trilhas e ruas e estradas. Eram caminhos opções, caminhos do pensamento, das decisões (pequenas ) que viram destinos: eram caminhos-destinos. Com isso a noção de tempo-espaço estava na mente e remetendo a um (tempo) passado de decisões tomadas. Agora. Temos o espaço físico sugerido de modo claro: do alto do seu ninho. Quem faz o ninho no alto? Em geral os pássaros. Se quem se espalha é a sorte e ela se espalha a partir do alto do seu ninho, temos aqui uma Sorte que é pássaro, que se espalha, quer dizer, que se lança a partir do seu ninho. Uma sorte que é destino e aqui a amarração com a temática da estrofe anterior: destino=caminhos, ou resultado de caminhadas, ou ainda destino=resultado de decisões tomadas. Também poderemos chegar à mesma conclusão se abandonarmos esta linha de análise e partirmos por outra, a saber: Se não exitems retornos por alguns caminhos, se morrem os sonhos, os ideais e soçobram objetivos ideais, se decisões tomadas viram destinos, e se até agora o espaço-tempo está na subjetividade ( porque os caminhos são caminhos-opções ) logo concluímos que o espaço-tempo está na mente. Se tudo isto sela o nosso destino, e destino=sorte, então do alto do seu ninho é uma imagem metafórica da cabeça do homem, ou seja, o ninho da sorte é a cabeça, e a sorte= está na cabeça. Seguindo por um, ou por outro, o resultado é imageticamente similar, porque se a sorte faz o ninho e por isso sorte=pássaro, por outro lado, ninho=cabeça, sorte=destino


sem critério nem escolha
em águas fundas ou rasas

A sorte que é um pássaro, ou seja, o destino tal qual um pássaro se espalha, ou seja lança-se, ou ainda alça o seu vôo, a partir do alto do seu ninho, ou a partir da cabeça, quer dizer, da mente, que é onde se originam os pensamentos que resultam em decisões e destas em ações. Mas existe um problema: ela, a sorte, ou o destino, o faz sem critério nem escolha / em águas fundas ou rasas. Seria o destino algo que não passa pelo crivo de nosso critério, sem o controle de nossas decisões, apesar de nascer, de partir o seu vôo, do ninho de nossas cabeças? Esta é outra pergunta que fica em aberto. E que águas seriam estas? Só o que sabemos é que podem ser águas fundas, como também podem ser águas rasas.

terras áridas ou encolhos
em todo canto encalha

Terras áridas, terrenos áridos, secos onde a semente não brota, ou encolhos, (isto é coisas encolhidas, encurtadas, restringidas, retraídas, resignadas ( de encolhimento, encolher-se ), em todo canto encalha, isto é, não prossegue, está impedido de prosseguir. E neste estar impedido de prosseguir, neste estar encalhado, nestas terras áridas onde não nasce a semente, nesta águas profundas ou razas ( nestas dores profundas ou razas? ) o poeta encerra a segunda estrofe, cujo encadeamento de idéias e de imagens conduz por uma lógica ditada pelo próprio poema, ao seguinte raciocínio: Não existem retornos por alguns caminhos, por algumas escolhas, e se morrem os sonhos, soçobram os ideais, os motivos, que aparecem no texto disfarçados em desatinos, e decisões pequenas também viram destinos, ou seja, o destino é construído não apenas por decisões importantes, que possuem maior visibilidade e destaque, mas também pelas pequenas decisões, pelos pequenos detalhes. Do alto da cabeça-ninho, a sorte-pássaro-destino se espalha, se lança, sem critério nem escolha ( talvez, e aqui eu estou fazendo uma concessão em relação ao método de análise, sem critério nem escolha por que ao invés do racional, estas decisões estejam sendo tomadas mais pelo emocional, que é uma entre poucas formas de explicar uma decisão pensada que não possui critério nem escolha, ou seja: o que motiva a decisão pequena não é a verdadeira razão, é apenas a razão aparente, aquela que emerge em águas rasas, já que a razão verdadeira jaz em águas mais profundas, protegidas pelo insconsciente).


o tempo abre feridas
mas cicatriza talhos
contamina o todo
quem não cura o detalhe
a ponte é um atalho
a arte, um entalhe.

O tempo abre feridas
Mas cicatriza talhos

Outra vez a forma do dístico. A objetividade da forma alinhada à objetividade do conteúdo. Duas linhas e está dito. Outra vez, a estrofação servindo para demarcar a relação tempo-espaço. Aqui o próprio tempo aparece como sujeito, anteriormente o tempo era advérbio, era função de localização implícita no discurso ( não exitem retornos por alguns caminhos... e decisões tomadas também viram destinos). Agora o tempo é sujeito. Ele abre feridas e cicatriza talhos. Como sujeito, ele pode se situar no passado sem necessidade de flexionar o verbo da ação no passado ( o tempo abre feridas, ao invés de o tempo abriu feridas ), isto serve ao propósito de dar à mesma frase o caráter de alerta ( cuidado com o presente, veja se não se está abrindo feridas que só com o tempo serão percebidas...). O tempo, como sujeito, pode, ao mesmo tempo ser passado, presente, e futuro. Por isso, mas cicatriza talhos, e não mas cicatrizou talhos, ou mas cicatrizará talhos. O verbo cicatrizar no presente do indicativo que indicar isto mesmo: o TEMPO É SEMPRE PRESENTE, mesmo quando passado, mesmo quando futuro.

Contamina o todo
Quem não cura o detalhe

Além do óbvio, que é perder toda a cesta de maças se não se separa a maçã podre, este dístico reforça o encadeamento do dístico anterior. Contamina TODO O TEMPO, quem não cura o detalhe, isto é, as feridas precisam e devem ser curadas, porque o TEMPO É PRESENTE, se não se as curam, a dor permanece, permanece o encalhe em águas fundas ou rasas.

A ponte é um atalho
A arte, um entalhe

Para fechar, mantendo a lógica da forma dística e da objetividade, dois petardos da síntese, que no poema reina absoluta e se afirma de maneira magistral. Porque a ponte é um atalho sempre: não se conhecem pontes que alonguem o caminho. A opção à ponte é o contorno, e o contorno, além de ser o caminho mais longo é também, no caso deste poema, a fuga. Logo esta ponte é um atalho, mas não é um atalho qualquer. É um atalho curar o detalhe e evitar que se contamine o todo. É um atalho no tempo, para aproximar passado e futuro, porque não há retornos por alguns caminhos. Porque o presente está marcado de passado. É prosseguir, é cruzar a ponte que se oferece como atalho, mas que na verdade é o único caminho, pois que o contorno não vai nos levar ao destino, vamos ficar encalhados em terras áridas, vamos ser encolhos.

A arte, um entalhe.
A arte é o que marca, que vinca, que sulca, que abre e fecha feridas, que deixa a cicatriz para lembrar sempre que a ARTE é como o tempo sem ser o tempo. Porque ela é atemporal e assim sendo será passado, presente, futuro, tudo ao mesmo tempo. A arte é um entalhe, uma marca no tempo e da qual o tempo não se livra, nem se livrará, porque a Arte é atemporal.

Gilberto Braz

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